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"A liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix (1830) |
A ideia de um direito natural nos remete
a um conjunto de normas não positivadas que transcendem o tempo e são imanentes
à natureza humana. Na antiguidade clássica, Cícero[2] assim se manifestou acerca da existência de um
direito natural:
“A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem (...). Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado (...). Não é uma lei em Roma e outra em Atenas, - uma antes e outra depois, mas uma, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar a si mesmo...”
Por razões didáticas, pode-se se dividir
o jusnaturalismo em duas fases[3].
Primeiramente, com suporte nas doutrinas filosóficas de Santo Agostinho e Santo
Tomás de Aquino, o direito natural era a incorporação, pelos homens, das leis
superiores. Como ensina Bittar (2005, p. 227), fica claro nas concepções de
ambos que a lei superior (a divina, para Santo Agostinho, e a eterna, para
Santo Tomás de Aquino) emana de uma força sobre-humana, qual seja: Deus.
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Hugo Grócio - pintado por Michiel Jansz van Mierevelt, 1631 (Wikipedia) |
Para Kaufmann[6], o
direito natural da modernidade apenas podia ser um direito natural
secularizado, baseado na máxima de que um tal direito teria de valer mesmo na
hipótese de Deus não existir. Essa nova
concepção, segundo Bittar (op. cit.,
p. 228.), “prepara as bases
intelectuais da Revolução Francesa (1789), que rompe, de modo definitivo e
prático, com a teocracia e afirma, categoricamente, os direitos naturais”.
Pode-se
dizer, então, que a Escola de Direito Natural e das Gentes formulou o
pensamento Iluminista surgido no século XVIII e cuidou também da criação de um
denominado jusnaturalismo racionalista, imortalizado nos documentos de
liberdade (FERREIRA FILHO, op. cit.,
p. 10-11).
Se, inicialmente, alguns direitos
compreendidos como naturais integraram os textos das primeiras declarações, por
herança histórica, conveniência ou necessidade, os mesmos foram reproduzidos
nas Constituições de países atualmente intitulados democráticos, tais como o
Brasil. Tal conclusão pode ser extraída pela simples análise do texto
constitucional, haja vista que a mera positivação da dignidade da pessoa humana
como fundamento do Estado implica na confluência entre a Ética e o Direito[7],
remetendo às doutrinas exsurgentes no Século das Luzes. Acerca da compreensão
do jusnaturalismo e da inserção nos textos constitucionais de “normas” oriundas
do direito natural, Sarlet ensina que
“da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que – de forma direta ou indireta – consagra a idéia da dignidade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado.”[8]
Portanto, a positivação de direitos
fundamentais foi responsável por trazer ao âmbito constitucional direitos antes
vistos como de índole natural, cuja finalidade precípua era assegurar e
promover, sobretudo, a dignidade da pessoa humana, mas não sob a forma posta
pelo Estado, e sim já concebida pelo homem, ou por ser inerente à sua natureza,
ou por decorrer da própria experiência humana absorvida pela razão.
Cumpre afirmar, assim, que os direitos
naturais marcam, de certo modo, a irredutibilidade do ser humano, visto como um
fim em si mesmo, concebendo valores irrenunciáveis agregados à sua natureza. E
a sua incorporação pelos Estados reafirma essa noção, de modo que suas funções
devem se convergir pela proteção do indivíduo e pela promoção de sua dignidade.
[1]
Para um estudo do percurso histórico do direito natural e da filosofia do direito,
ver KAUFMANN, Arthur. Filosofia do
direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Fundação Calouste Gulbenkian:
Lisboa, 2004, p. 29-57. Sobre as doutrinas jusnaturalistas, conferir BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. Curso de
filosofia do direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 227-236.
[2]
Citado por BARROSO, Luís Roberto. Interpretação
e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 320.
[3]
João Maurício Adeodato, por sua vez, salienta que, à semelhança do que ocorre
no âmbito do juspositivismo, entre os jusnaturalistas há diferenças
inconciliáveis sobre em que consistiria essa então denominada “natureza”
suprapositiva. Didaticamente o autor enumera quatro grandes correntes
jusnaturalistas: teológica, antropológica, democrática e de conteúdo variável.
(ADEODATO, João Maurício. Ética e
retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 189)
[4] BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. Curso de
filosofia do direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 228
[5]
Conforme Manoel Gonçalves Ferreira Filho, deve-se a Hugo Grócio a laicização do
direito natural. Nas palavras do autor, “o jurista holandês entende decorrerem
da natureza humana determinados direitos. Estes, portanto, não são criados,
muitos menos outorgados pelo legislador. Tais direitos são identificados pela
‘reta razão’ que a eles chega, avaliando a ‘conveniência ou inconveniência’ dos
mesmos em face da natureza razoável e sociável do ser humano” (Direitos humanos fundamentais. 11 ed.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 10). Neste mesmo sentido, afirma Barroso (op. cit., p.321, nota 33) que “o
surgimento do jusnaturalismo moderno é usualmente associado à doutrina de Hugo
Grócio (1583-1645), exposta em sua obra clássica De iure belli ac pacis, de 1625, considerada, também, precursora do
direito internacional. Ao difundir a idéia de direito natural como aquele que
poderia ser reconhecido como válido por todos os povos, porque fundado na razão,
Grócio desvincula-o não só da vontade de
Deus, como de sua própria existência”.
[6] KAUFMANN,
Arthur. Filosofia do direito.
Tradução de António Ulisses Cortês. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2004,
p. 37.
[7]
Como se observará no decorrer deste trabalho, a reaproximação da Ética ao
Direito é uma das mais importantes
conquistas do direito contemporâneo, porquanto marca, precisamente, a superação
do positivismo jurídico, lançando-se rumo ao pós-positivismo.
[8] SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 103.